Pescador, nascido e criado na praia do Mucuripe, Lindenberg, conhecido como “BOY”, estava em uma jangada, com mais três companheiros, no través do Aquiraz, a leste de Fortaleza. Mastro em cima, vela enrolada, descendo com vento de popa. Era hora da refeição e todos já haviam comido, exceto o BOY, que estava de costas pras ondas, se preparando pra comer, com a cuia que os pescadores usam no lugar do prato entre as pernas. De repente, um “buraco de mar”, onda traiçoeira, quebrando... a proa da jangada se enfia na água, a popa levanta e tudo fica de cabeça pra baixo.
Seria acidente chato mas banal, de fácil conserto... Enche-se a jangada de água, pra ela ficar “beba”, amarram-se as cordas de forma conveniente e, ajudada por uma onda amiga, a tripulação faz escora no lado oposto da onda. O barco desvira. Esgota-se o interior, rearruma-se a tralha e tudo segue normal.
Dessa vez, no entanto, foi diferente. Quando a jangada virou, o toaçu desceu rápido pro fundo e se enganchou no cavalete, que levou junto, arrancando a taboa da jangada. Apavorados, os marinheiros escutaram o arfar do vento escapando pelas brechas da madeira, enquanto a água alagava o interior. Primeiro embicou a proa e ficou só a popa de fora. O barco estava perdido e cuidaram de livrar tudo que fosse possível, cortando as cordas e tentando recolher o que ia se soltando. Sobrou a caixa de peixes, a tranca da vela (retranca) e a tampa da caixa. O resto se espalhou rapidamente e não foi possível juntar.
Os quatro ficaram juntos, nas primeiras horas. Derivavam com a corrente de leste pra oeste, vendo ao longe, (10 km) a costa do Ceará. Passado algum tempo, o primeiro, João do Braz, decidiu... Iria com a tampa da caixa, buscar socorro...
Restaram os três... O BOY e o Milton Jr se segurando na tranca. O mais velho, Santelha, encolhido, de cócoras, na caixa de peixes. Milton Jr começou a fraquejar... O BOY tentava pega-lo, mas, mole, escorregava e ficava pra trás... Começou a afundar... foi buscado a primeira vez e, quando subiu, já não respirava... Foi amarrado na tranca. Numa onda mais forte, se soltou e ficou pra trás... afundou lentamente.
Passaram na frente de Fortaleza. Viram as jangadas conhecidas saindo pro mar, gritaram, mas não foram ouvidos. As velas, armadas para o terral, escondiam os rostos dos amigos que passavam e tapavam sua visão. Por vezes, a terra parecia muito perto, mas a prudência não aconselhava a tentativa de nadar. A maré mudava e os levava pra longe. Havia sempre a esperança do companheiro que saiu nadando voltar, com o socorro prometido.
No través do Pecem, já estavam separados. O velho dentro da caixa e BOY agarrado à retranca. A proximidade da terra permitiu ver, com clareza, um homem descendo o morro com alguma carga nas costas.
Juntando coragem, o BOY fez a tentativa desesperada e encontrou, já a 20 metros da praia, um bote tripulado, no qual subiu, num arranco das últimas forças... Pediu comida e água e recebeu tapioca e suco de murici... Entalou completamente e pensou que morreria ali, engasgado. Pouco a pouco se recuperou e falou do companheiro na caixa.
O velho da caixa era homem vaidoso, com a boca cheia de dentes de ouro. Foi achado pela curiosidade de pescadores que, vendo uma caixa de peixes à deriva, se aproximaram pra recolher o que fosse... Quando chegaram perto, foram assustados por uma risada cheia de ouro, de um ser que parecia de outro planeta... Apavorados, fugiram e só lentamente tomaram coragem de voltar e recolher a aparição... O velho foi retirado da caixa na mesma posição encolhida em que estava. As juntas todas travadas. Não resistiu muito tempo e morreu no hospital.
O BOY passou muito tempo convalescendo das 86 horas na água. A pele despregou em vários lugares e havia feridas no corpo todo. Baratinhas brancas fizeram a festa no corpo do náufrago e causaram muitos estragos. Virou herói e foi notícia de jornal.
Hoje, 20 anos depois, não embarca mais... faz bicos na praia, vigia barcos, ajuda com cargas. É impressionante o relato que faz desse naufrágio e o terror medonho que tem do mar. Quase chora quando lembra a tortura que é ver a vida seguindo normal na terra, ali pertinho, enquanto se morre no mar. Segundo ele o mar é vivo, maldoso e vingativo. É manso pra atrair, mas maltrata e mata quem se atreve e se descuida.
Muito boa e bem contada essa estória amigo Airton. Idéia. Você podia entrevistar todos os velhos pescadores de Fortaleza e contar no seu blog suas melhores estórias de MAR. Eu ia adorar.
ResponderExcluirEi posso importar essa pro meu blog?
Bons Ventos
Fernando "Estrela d'Alva" Costa
Já leu essa aqui?
http://estreladalvacabofrio.blogspot.com/2010/10/carapeba-canoa-lowtech-e-eco-correta.html
Ia te pedir pra velejar um Vaurien no Canadá, mas logo depois você sofreu aquele acidente e deixei rolar...
Fernando.
ResponderExcluirFique a vontade para linkar... É uma honra.
Eu poderia "polir" melhor a história mas a vontade de compartilhar logo apressa.
Abraço.
Airton
ResponderExcluirPolir uma estória faz sempre bem pra saúde da estória. Se você quiser eu espero pelo final do polimento.
Acho que vou fazer o que te sugeri, vou procurar velhos marujos aqui em Cabo Frio que tenham boas estórias da MAR pra contar. Todos têm ao menos uma ótima. Vou entrevistá-los e recontar a melhor estória de cada um no meu blog, na rubrica ESTÓRIAS VIVIDAS... Devo-lhe uma cerveja por isso. Essa estória do Boy me lembrou um ótimo conto de Guy de Maupassant... Um conto curtinho e excelente... Vou procurar pra vc. Se encontrar, volto aqui e te passo o post.
Bons ventos!
Já leu esse aqui?
http://estreladalvacabofrio.blogspot.com/2010/10/velejar-e-fazer-amor-com-mar.html
Chaposo... ficou ótima a narração!!!
ResponderExcluirMas triste a história.
O mesmo mar que dá a vida, as vezes, tira.
Abraços ;)
Fernando Previdi
Airton,
ResponderExcluirFiquei surpreso com esta verve poética insuspeitada. Parabéns!
Adorei o texto e acredito que não necessita de polimento algum.
Algumas superfícies precisam permanecer enrugadas e assim, compactuarem com o ambiente hostil de onde são derivadas.
Belo e utilíssimo blog, sobremaneira aos locais da enseada do Mucuripe, onde Pinzón descobriu o Brasil.
Pronto amigo Airton!
ResponderExcluirDito e feito!
http://estreladalvacabofrio.blogspot.com/2010/10/o-naufragio-do-boy-de-autoria-de-airton.html
Obrigado pelo presente e bons ventos!
Fernando "Estrela d'Alva" Costa, o maluco da canoa alada
Impressionante a história! De arrepiar!!! nossa...
ResponderExcluirExcelente o blog, parabéns!